Mãe de gato, mãe de cachorro

Ninho de Mafagafos

Ninho de Mafagafos

Não fosse a mania da Olivia de comer fios para matar o tédio, e a ideia mirabolante de construir uma torre para os gatos se divertirem, tudo continuaria igual.

Mas já na reta final da construção do empreendimento imobiliário felino, um prédio de três andares com cobertura e arranhador, estávamos entre tábuas de madeira lixadas e alguns parafusos do tamanho errado, quando uma bolinha de pelos minúscula apareceu balançando o rabinho de um jeito tão encantadoramente maravilhoso que eu não consegui deixar de agarrar e apertar e apertar e apertar.

Já apaixonados pelo filhote vira-latas da vizinha, eu e o Pai de Gato continuamos a construção do triplex com o cachorrinho enroscado em nossas pernas. Foi só quando ele começou a revirar o lixo insistentemente que eu, intrometida que sempre fui, resolvi procurar a vizinha para elogiar a fofura do cachorro e sutilmente dar aquele toque: “amiga, seu filho tá com fome”.

Descobrimos que o filhote era de uma outra vizinha, cujo filho pegou na rua, mas que não queria o cachorro, não estava cuidando, e daria para quem quisesse levar. Levei.

Não que eu tenha tempo, dinheiro e espaço de sobra. Mas àquela altura do campeonato eu já estava apaixonada demais para deixar aquela coisinha ali.

Infelizmente, abrigos de ONGs vivem na lotação máxima, todo protetor passa sufoco para arcar com as despesas dos animais que resgata, e no Centro de Controle de Zoonoses a fila de espera dos cães por um dono pode durar sete anos. Enquanto isso, filhotinhos de raça são “fabricados” em escala industrial por criadores, vendidos por R$ 3 mil em pet shops e às vezes exportados para outros estados como se não houvesse nenhum outro cachorro ali na primeira esquina querendo um dono. A questão dos animais de estimação no Brasil é esquizofrênica e desesperadora demais para que eu consiga resolver sozinha, mas, movida principalmente pela paixão instantânea pelo filhote, decidi que tentaria impedi-lo de entrar para as estatísticas do descaso.

Se Bilbo Bolseiro não tivesse vindo para a minha casa, talvez nem estivesse vivo hoje. Na primeira semana por aqui, um olhinho inchou e ficou opaco. Podia ser cinomose, mas por sorte a doença é menos grave: ele está com erliquiose, transmitida por um carrapato. Entre outros sintomas, ela causa anemia grave e pode matar.

Mas nosso pequeno hobbit não se deixou abater e deve terminar o tratamento em dez dias. O olhinho está ótimo, ele não perdeu a visão, e não tem mais nenhum sintoma da doença. Palmas pra ele e pra Dra. Tatti da Cobasi.

Em um mês, o novo morador também já construiu uma relação quase estável com os donos da casa. Mia dá longos banhos no filhote, dorme aninhada e faz xixi no tapete dele. Já Marvin tem se revelado um talento do jiu jitsu e passa o dia rolando pelo chão com Bilbo. Os dois até tentam brincar juntos com a bolinha, mas cada um tem as próprias regras para a brincadeira e nenhuma das partes parece disposta a ceder.

É claro que eu também fiquei bem preocupada com a viabilidade de manter um cachorro vivendo em um apartamento que já tem quatro gatos. Eles vão se odiar? Eles vão me odiar?

Poderia acontecer. Mas que bom que tudo fica melhor com o passar do tempo.

Amelie parecia disposta a viver pra sempre dentro de um armário e está nesse momento dormindo no sofá com o cachorro. Os dois separados apenas por uma almofada. Não que eles se amem loucamente, mas também não vivem em pé de guerra. A outra gata, que também não ficou muito feliz com a presença ilustre de Bilbo Bolseiro, ainda sente um pouco de medo, mas já deixa o filhote chegar perto dela. Com o portão baixo que separa a cozinha e a área de serviço do resto da casa, os gatos têm um espaço tranquilo e o cachorro não come a comida que não é dele.

Minha casa também não tá fedendo a xixi e os vizinhos não cogitam chamar a vigilância sanitária. A vizinha do mesmo andar disse que não escuta o Bilbo latir e só percebeu que tem um cachorro morando aqui porque o dela ficou na minha porta.

Pode ter uma pocinha no meio da sala de vez em quando, e ontem mesmo eu pisei em um coco quando entrei. Mas tudo isso é passageiro, filhotes aprendem rápido a usar o tapete higiênico, e limpar xixi e coco do chão de casa leva menos de três minutos. Nunca soube da história de uma mulher que agonizou e morreu de tanto limpar o xixi do cachorro.

Eu não queria um cachorro. Não fiz planos para adotar um e se alguém me perguntasse se eu queria usar minhas poucas horas livres para ensinar um filhote a fazer xixi no lugar certo eu diria na lata um “não, obrigada” sem dúvida alguma. Mas o ser humano é um animal plenamente capaz de lidar com reviravoltas e se adaptar – por isso chegamos até aqui e não morremos nas cavernas. A empresa passa por uma crise quando você está feliz e de boa no seu trabalho, e te faz repensar a vida e procurar outro emprego. O amor da sua vida aparece quando você sai de havaianas e meias para comprar leite no mercadinho, e não quando você se produz para o Oscar e gasta R$ 400 para fazer cabelo e maquiagem. Às vezes o amor da sua vida aparece até quando você está comprometido com alguém. Aí você para, pensa, toma sua decisão e vai ser feliz. Se você abrir o coração, vai viver bem e em paz com a sua escolha.

Então, por mais que esse “filho” não tenha sido planejado, ele traz felicidade, se você escolher ser feliz com ele.

Se você quer um cachorro, ou se você nem queria mas apareceu algum na sua vida e você não sabe se dá conta desse filho, tenha paciência e abra o coração. Crianças passam anos mijando em fraldas, camas, sofás e colos e ninguém as leva para feiras de adoção por causa disso. Em dois anos o cachorro já é um adulto maduro, diferentemente da criança, que aos dois anos de idade está no auge da capacidade de enlouquecer todo mundo. E mesmo assim o ser humano é perseverante e aguenta firme o rebento por umas duas décadas. Tem filho que passa três, quatro décadas ali e nenhum pai (exceto os realmente perturbados) o tranca no banheirinho.

Meus pais não desistiram de mim (e eu mijei na cama muito mais do que uma criança normal), seus pais não desistiram de você, não vejo motivos plausíveis para desistir de um cachorro. Força!

Depois de um mês com o Bilbo em casa, eu sinto que está tudo dando certo quando o vejo abanando o rabo enquanto dorme. Se ele tem sonhos bons, deve ser porque é feliz. Mesmo tendo erliquiose, morando em um apartamento com quatro gatos, passando o dia sem pessoas por perto porque temos que trabalhar. Ele ainda não pode tomar vacinas e por isso não sai para passear, não brinca no parque, não pode ter contato com outros cachorros. Mas nessa nova vida o Bilbo parece ser feliz.

Eu sou interrompida quando estou assistindo Sense8 e quando – SPOILERS! – Cersei Lannister está apanhando na prisão, porque o Bilbo quer brincar naquele fatídico momento e porque ele fez xixi na sala de novo. Tive medo de dar tudo errado e minha vida virar um caos, nunca limpei o chão tantas vezes em tão pouco tempo, e agora mais do que nunca recuso convites para sair porque prefiro ficar em casa com os meus bichos. Mas isso, no meu conceito de felicidade, também é ser feliz. Então eu, que já era mãe de gato, virei mãe de cachorro também.

E os gatos adoraram a torre.

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